O poeta sem cultura
Por Adeir Ferreira
O Poeta sem Cultura é uma obra de
versos e rimas, escrita por Amantino Camilo Alves (Nelpa, 2013). A expressão “sem
cultura” se refere ao fato de o autor possuir baixa escolaridade. Diferentemente
da tradição nordestina e também nortista – nas quais, sem muito esforço
encontramos um rimador, um repentista, um contador de causos, um trovador, um poeta
popular –, encontramos em Minas Gerais um poeta popular, Amantino.
Eu não possuo habilitação
acadêmico-literária para classificar nem mesmo um arranjo de versos septilhados,
como é a preferência do Amantino. Como mero filósofo que sou não reúno
competências específicas para apreciar formalmente um texto em seu rigor léxico-gramatical,
nem histórico, muito menos literário, senão em sua identidade existencial,
política, cultural. Mesmo assim o faço sob um reconhecido grau de superficialidade.
Superficialidade no sentido amplo da palavra, a fim de enfatizar a ousadia em
cientificizar algo. Se é que nos é preciso. Aliás, nesse momento eu questiono: não
é exatamente dessas estruturas formalistas que O Poeta sem Cultura bate em
fuga?
Certamente que sim. O Poeta sem
Cultura foge, mas, sem o reconhecimento do peso formalístico que recai sobre
ele. Evidentemente, o fato de a terminologia poética se apresentar como sem
cultura diz respeito à formação escolar do poeta. Talvez eu tenha poucas rugas
para dizer com autoridade que a experiência sempre nos mostra que o conhecedor
é muito mais temeroso do que o ignorante. Em razoável espaço de tempo, fui
testemunha ocular de sujeitos que arrogavam para si envergadura suficiente para
levar a cabo uma empreita ousada. Só não o fizeram por temer as consequências, obstáculos
ou adversidades que lhes eram conhecidas. Surpreendi-me também com tantos
incultos que em sua ignorância se tornaram grandes gênios. No fundo, por
desconhecer a existência de obstáculos.
Testemunhar a morte de um poeta é
uma das coisas mais comuns de se ver. Mas testemunhar o nascimento de um poeta,
isso é um fenômeno raríssimo. Não me refiro precisamente à morte de ícones
históricos ou de ícones do mercado literário. Falo daqueles poetas de
engajamento existencial, cujas palavras foram escritas com o próprio sangue,
parafraseando o Zaratustra de Nietzsche. Falo de Pasolini, de Clarice Lispector,
de Fernando Pessoa. No entanto, eu falo de Amantino não como um extemporâneo, mas como
um exculturâneo.
Quando é que surge o poeta?
Amantino surgiu como poeta já em sua infância. Mas a indigência política,
cultural e social do seu meio o fez ser apresentado aos seus leitores somente
na sua velhice, aos 71 anos de idade. O gênio paradoxal de Amantino o fazia
sempre ser uma incógnita até mesmo para seus filhos e esposa, o que dirá a
sociedade. Ele não conseguia um minuto de atenção dos ouvintes e leitores para
os seus textos, senão sob o manto de uma árdua insistência. Na vida de trabalho
Amantino convivia com a classe operária, de baixa escolaridade. Na religião ele
nunca conseguiu sua oportunidade de expressar livremente. Não foram poucas as
vezes em que seus textos especiais de homenagem aos dias festivos e
comemorativos arrancavam aplausos por hábito social, e construía piadas de sarcasmo
por hábito espiritual. O espírito oscilante de Amantino nunca facilitou o meio
termo. E socialmente, na sua cidade não havia e nem há espaços culturais, e nem
bibliotecas para o endireitamente de um espírito arredio como esse.
Quando me dei por gente, na minha
adolescência, vi um Amantino alcóolatra, brigão, violento, piedoso, ingênuo, pobre
e compassivo. Parecia que todas as suas inquietações tornava-o cada vez mais
incompreendido. Muito temido, muito amado, muito criticado. Rejeitado por
todos. A caneta e os papeis velhos que pareciam ser a sua prisão se
transformaram em seus instrumentos de libertação. Parecia que a cada texto que
Amantino escrevia mais ele se encontrava. Embora não houvesse ainda leitores
dos seus garranchos. Mas, ele escrevia para si mesmo, e seus leitores
imaginários aprovavam suas expressões.
Lembro-me que, quando ele estava
na casa dos 50 anos, já se notava em seu semblante um ar de auto compreensão. O
alcoolismo já havia sido dominado. O diálogo já havia sido reestabelecido com
algumas almas mais pacientes. Não se pode descobrir completamente o valor de um
homem quando tudo o que você sabe sobre ele é apenas efeito de lisonja ou maquiagens
para a quimera egóica. Como um de seus nove filhos eu fui educado a ferro e
fogo. Por inúmeras vezes Injustificadamente eu e meus irmãos fomos duramente
repreendidos, castigados e reprimidos. Não há nada mais doloroso do que apanhar
sem motivo ou sem razão suficiente. Às vezes o próprio choro era um motivo. Qualquer
lugar era melhor do que o lar. No entanto, às duras penas pude compreender
lentamente a alma de um pseudo algoz.
O que faz um poeta?
Quando se tem que explicar os possíveis
sentidos numa expressão como esta, de duas uma: ou o escritor falhou em seu
processo comunicativo ou sua intenção é ambígua. Quando se tem que explicar uma
expressão como essa pode revelar, além das duas primitivas hipóteses, a tenra
experiência no mundo da escrita e da leitura e também da cultura. Muitos leitores
buscam cada vez mais textos diretos, curtos, mas com efeitos profundos. Ou seja,
buscam informações. É nesse sentido cultural que a poesia em especial se tornou
informação. É também nesse sentido que percebemos em sala de aula o conteúdo
como informação, como já é apontado nos livros paradidáticos de filosofia. O alunado
quer informações para a prova.
Tenho que abrir mão do ritualismo
filosófico como cultura para dialogar com as diversas frentes. Isso não me
torna mais inculto, pois consigo ainda preservar a reflexão. No entanto, me dói
ver muitos saberes que se flexionam ao ponto de mostrar seus privados orifícios
no intuito de serem aceitos. Esse processo-de-massificação-mercadológica
arranca a alma do saber. Suprimir a alma é algo tão sutil que não permite aos
espíritos comuns sentir sua ausência. Esse pacto diabólico foi apontado por
Theodor Adorno em Notas de Literatura I como
formalismo/academicismo/positivismo/cientificismo, no qual todos esses sufixos “ismos”
substituem a alma pela estrutura bela/formal. Ele aponta o ensaio como forma de
preservar a crítica. Nietzsche chama a liberdade do espírito de vida, em
oposição ao espírito idealista, cientificista e racionalizado da Era Moderna. Soren
Kierkegaard chama de luta existencial toda a saga interna do sujeito que tenta
preservar sua ipseidade à salvo, frente ao idealismo do século XIX. Pasolini
tenta manter as frações culturais da Itália intactas perante o assédio burguês da
unificação do país, e do processo de globalização que já apontava suas garras
na década de 70.
O que faz um poeta não é sua
poesia. O que faz um poeta ser o que ele é está ancorado existencialmente em
sua própria visão de mundo. O que faz o Amantino ser autêntico é sua relação
profunda com a classe baixa. Baixa também em termos econômicos, culturais,
políticos e sociais. O conteúdo de suas poesias, chamada por ele de “mensagens”,
são histórias do seu cotidiano. Coisas que ele ouviu, testemunhou. Histórias bonitas
que alguém contou pra ele. Muita gente delega ao trabalho mecânico de colocar
rimas em textos o dom poético. Na verdade, não sei exatamente em que momento,
mas podemos sentir de um verso a outro, de uma estrofe a outra, mais do que uma
sabedoria estrutural nos escritos de Amantino. Percebe-se que há uma
intencionalidade ética, espiritual e política. Agora entendi porque ele chama
de mensagens os seus escritos.
O que faz um poeta? No cotidiano,
a ocupação de um mensageiro não é lidar com suas mensagens, mas com a sua
existência. Jogar sinuca, fazer excursões, ir á igreja, levar netos para escola,
arrumar a casa, fazer almoço... Suas mensagens serão apenas espiritualização do
seu ato de testemunhar. Como se vê em Kierkegaard, a luta do Cavaleiro da Fé é
sempre interna, sempre sua, sempre silenciosa. É isso o que o torna
incompreendido, isolado. Mas, compensatoriamente o torna autêntico. Já o
Guerreiro é o tipo de escritor que precisa de público para dizer o que ele é,
quem ele é, e o que ele faz. Quem define um poeta comum é o seu público. O que
define um poeta existencialista é o que ele é por natureza.
Mas, falando em miúdos. Quem vai
se interessar por uma obra sem expressões universais, e sem estruturas formais?
Quando comentamos uma leitura que fizemos, em geral sentimos um
engrandecimento, mesmo que de fachada porque a notoriedade do escritor eleva o
ego do leitor: “li este mês Carlos Drumond de Andrade”. Quando lemos um texto
artesanal, como o Poeta sem Cultura, encontramos a nós mesmos. Identificamos uma
pessoa, uma situação, um gesto – que além das belezas das rimas –, evoca em
nosso âmago uma reflexão intimista. Pois em alguns momentos somos ou encontramos
um ser humano Sem Compaixão, Sem Respeito, Sem Humildade, Sem Honestidade, Sem
Amor.
A obra
Em 2013 ela teve a primeira
impressão com poucas tiragens. Em 2015 ela começa a ser comercializada.
Estima-se que até 2016 uma nova
obra (Mensageiro do Sertão) que já está sendo concluída chegue ao público.
Aos interessados, solicitar
informações e encomendas pelos contatos:
adeir.ferreira@yahoo.com.br – adeir.ferreira@outlook.com
– Editora Nelpa.
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