(LF-2015) TEXTO DE FILOSOFIA

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Pier Paolo Pasolini e Hannah Arendt: um passado muito presente.


Por Adeir Ferreira

Tempos de crise da palavra.
O presente tema nos sugere aquela cadeia de títulos, que inclusive é uma moda desengavetada, tais como, “tempos de crise da verdade, ou, da política, ou do homem, ou do sentido da vida...”.  É justamente essa infinda possibilidade dos significantes dos signos que nos revela o intento de totalizar ou absolutizar o “qualquer coisa”. Porque a presente era nos é um mosaico em busca de uma decifração unícone dos estilhaços deixados pela secularização.

Sobre a perda da univocidade, calcada na tradição, através da filosofia e da religião, da moral e da política nos fala Pasolini, cineasta e escritor italiano da década de 70. Nesse sentido, também nos fala Hannah Arendt (1906-1975), filósofa política, judia-alemã. A secularização somada ao neoliberalismo fragmentou a base antropológica ocidental. O capitalismo somado às formas políticas selou a vida do homem moderno e contemporâneo. O que nos resta, segundo Pasolini, é Os Jovens Infelizes. Já para Arendt, estamos Entre o Passado e o Futuro.

A herança deixada aos jovens.
Os Jovens Infelizes reúne vários pequenos textos que expressam as máximas do pensamento de Pasolini sobre a decadente cultura italiana. Cultura que sucumbe perante o assédio das formas políticas, imbricadas pelo capitalismo. Consequentemente, a Itália padece porque a juventude evoca os sintomas da hipocrisia fascista colocada pelos pais. Portanto, os filhos pagam pelos pais. A ideologia ditadora das regras da vida é a farsa burguesa que substitui uma forma de dominação por outra ainda pior. Quebra o fascismo arcaico e nos dá um liberalismo, invisível, persuasivo, medíocre. Este estilo dominante é o que impera na Itália de Pasolini. O contexto político trata sobre o processo de unificação da Itália na década no final do século XX.

Há uma miscigenação social italiana. Nesta pseudo igualdade mix se extingue as diferenças individuais, particulares, sociais e se cria uma identidade massificadora, o todo. No entanto, esse todo tem uma cara burguesa. O que prevalece é a sarcástica ideologia que determina veladamente o próprio sonho de liberdade, tirando qualquer autenticidade, subjetividade e particularidade do indivíduo. Por isso, os jovens infelizes choram, fazem revoluções, mas de nada adianta, pois tudo isso está previsto nas determinações ideológicas do neoliberalismo.


Identidade de Massa
No Discurso dos Cabelos (pág 37 a 44) Pasolini descreve a manifestação do sintoma de uma ausência de autenticidade dos jovens italianos. Ao ver dois rapazes de cabelos compridos num bar, Pasolini ficou impressionado com a audácia inovadora que rompia com o padrão estético e cultural dos jovens daquela época. O que mais impressionou a Pasolini foi o silêncio dos cabeludos. A linguagem verbal foi substituída pelos cabelos compridos, que ao mesmo tempo poderia dizer alguma coisa de antifascista, na verdade não dizia nada. Não permitindo, portanto, saber se se tratava de um protesto, ou de um conluio com a ideologia burguesa. O que a priori era de fato um manifesto adquirido de influências de críticas alheias (estrangeiras), depois se tornou um elo com as ideias burguesas italianas.

No entendimento de Pasolini, qualquer forma de protesto era precária, pois lhe soava como uma subcultura que se opõe a outra que está no poder. Os jovens cabeludos, assim como as outras formas de protesto não distinguem as ideias de direita ou esquerda. Não há distinção, e sim uma massa que tem variados estilos, esse mosaico na verdade revela o vazio, a carência e a pobreza de autenticidade.

A secularização 
Ao analisar a presente crise antropológica, Pasolini retoma as lembranças de sua infância, e de sua educação camponesa. Dessa forma ele rememora os valores que não deveriam ter sido extinguidos. A secularização não foi total, como costumamos pensar. Ocorreu na Itália, talvez em todo o Ocidente apenas uma substituição dos valores religiosos pelo ideal burguês. Ou seja, mesmo a religião em seu isolamento ainda é um produto a ser explorado pelo sistema de consumo. A secularização, com o convencimento de liberdade, tirou a noção de pecado. Livre do fogo do inferno as pessoas podem gozar eternamente seus anseios terrenos. Mas tudo isso tem um preço que se paga num purgatório terreno.

O pecado cometido era reparado com o ato penitencial. O pecador permanecia na condição de cometer novamente o mesmo erro, mesmo sabendo que é seu destino. Mas, sabe também que será sempre perdoado no confessionário. Por isso, há um certo alívio psicológico em desfrutar alguns prazeres terrenos, afinal, somos humanos.  O secularismo tirou o pecado de cena, portanto, os atos agora obedecem ao liberalismo. Não há mais um deus punidor, igualmente não há quem perdoe ou o que se perdoar. Consequentemente, o peso dos atos livres, que talvez, são até menos pecaminosos do que os antigos pecados, é um peso que recai sobre os ombros do homem-sem-Deus-para-perdoá-lo. Pasolini chama esse fenômeno de "sentimento de culpa". Podemos entender também como “moralismo burguês”.
A moral burguesa alivia o nosso sentimento de culpa porque nos impele a agir coletivamente. Agir em massa nos isenta da autonomia, da responsabilidade, e o pior das faltas, a da individualidade. Ou seja, a liberdade é a permissividade para agir às claras. Não assumimos nossos atos e nem nosso destino, porque tudo é público. Por isso, o resultado é uma angústia infernal, expurgada não mais com o ato penitencial aos domingos, mas sim com o consumismo desenfreado ou a drogadição, etc. Mesmo que nada de ilegal o sujeito tenha feito, este “nada” já é um motivo a mais para que ele procure um engajamento coletivo dos desesperados por um sentido em massa. Mesmo que esse sentimento de coletividade seja o próprio vazio.

Revolução injustificada
A postura intelectual de Pasolini é clara, é total, é radical em relação aos valores da nova ordem burguesa. Os seus filmes, escritos e sua própria vivência nos mostra seu engajamento na causa que abraçastes. Sua causa não era social, não era partidária, não era anti-religiosa, nem cultural. Sua causa era contra um sistema político, contra um sistema social burguês, contra uma moral religiosa descabida, e contra uma cultura consumista que perverte a sociedade italiana. Pasolini era contra esse sistema que trouxe uma forma de vida que destrói a autenticidade, as particularidades grupais, apelam para uma totalidade massificadora e vazia.
Quando vejo ao meu redor, que os jovens estão perdendo os antigos valores populares, e absorvendo os novos modelos impostos pelo capitalismo, correndo assim o risco de uma forma de desumanização, de uma forma de afazia atroz, de uma brutal ausência de capacidade crítica, de uma facciosa passividade... (pág. 115). 

Essa juventude corrompida quando protesta justificadamente reclama uma autenticidade nunca tida. Ou seja, a juventude é sempre passiva, obediente às determinações. Quando subverte alguma coisa, seu protesto é sempre pela liberdade, pelo aborto, pela liberação das drogas. Essas opções nada têm de niilismo, sim de fortalecimento do pacto com a decadência outorgada pelo liberalismo burguês.

A cara do tempo 
Pasolini tem uma visão social, aliás, tem uma visão das pessoas com uma benevolência e piedade própria dos religiosos. Aliás, que os religiosos deveriam ter e perderam para o fascismo. Para ele, a pobreza, antes de ser marginalizada pelo capitalismo, era uma forma de vida agradável. Ninguém vivia desesperado por querer erradicá-la. Era uma condição que as pessoas viviam, mas com uma dignidade que conferia autenticidade e sacralidade ao modo de viver. Ou seja, as pessoas eram felizes.  

Os antigos valores eram um marco sólido e central dos costumes. Até mesmo as cidades do interior estão tendo seus costumes devastados. A peculiaridade camponesa agora tem um ar urbano. Isso graças à televisão, que veicula uma realidade burguesa, que tende a massificar todo mundo, dando uma cara única para todos. O instrumento mais tirano do capitalismo é a televisão. Ela é uma de difusora ideológica que rompe todas as barreiras e todas as cercas que nos diferenciam. Agora somos todos híbridos. Perdemos a sacralidade.  

Os trabalhadores, que antes eram uma classe que se opunha à classe dominante, passaram a fazer parte do sistema ideológico burguês. Pasolini se irrita com os trabalhadores porque vê neles a submissão ao sistema dominante. Suas reivindicações não fazem um apelo a sua condição de trabalhador, e sim a intenção de alcançar o topo da escala piramidal capitalista. Esse é o povo que se deixou seduzir. Por isso, Pasolini vê nos marginais de Roma uma autenticidade ainda possível. A sacralidade ainda não contaminada. Se essa classe não é avessa ao sistema, o sistema é avesso a ela. Porque os mendigos, prostitutas, ladrões não produzem capital. Eles não estão empregados no sistema consumista. Eles têm uma linguagem própria das ruas e dos guetos. 

Os próprios dialetos deixaram de ser falados nos pequenos grupos. Embora Pasolini tente resgatar a língua dialetal própria das identidades grupais, ele percebe que a perda é um anuncio do processo de massificação que já incorporou nesse povo. Por isso, os marginais ainda permanecem invictos. Eles têm um código próprio, cada vez mais inacessível. Há uma modificação nesse grupo, mas sempre no intento de preservar e isolar essa classe do sistema capitalista. 

A sexualidade capitalista 
A sexualidade antigamente era velada pelos valores da tradição. A masculinidade e a feminilidade eram segregadas. O rapaz vivia no grupo de rapazes aprendendo a ser homem castamente, até a hora da maturação para o momento da copulação. Assim também a mulher vivia no grupo de mulheres aprendendo a ser mulher, até a hora do coito. Consistia nesses pressupostos da espera, o tabu, a preservação, a felicidade. Atualmente há uma interação e comunhão do novo tipo de macho e de mulher que compartilham juntos as companhias, as curiosidades e a sexualidade. O homem ficou efeminado e a mulher masculinizada por causa da liberdade que obriga ao prazer. A obsessividade é o resultado da camaradagem entre os sexos.  

Também no corpo, a influência da revolução libertária fez morada. O senso de propriedade privada individualizou a pessoa ao ponto de perder o tradicional sentido da vida humana. O coito é investido das mais altas liberações. Isso trás resultados como filhos, por sinal, abomináveis para o novo ideário burguês. O novo tipo de casal deve ser consumidor e não gerador de prole. Por isso o aborto é encarado com naturalidade e conformismo, porque esta é a forma de dizer que o crime foi legalizado e financiado pelo capitalismo. 

A vida deixou de ser sacra. O liberalismo e o consumismo nos dão a sensação de naturalidade. Dessa forma, o sentido da vida se torna nulo perante a perda da sacralidade. O gozo do coito se reduz a si mesmo. Ele não é mais um fim de procriação, fato este constatado pela tentativa de legalizar o aborto. Os filhos são malditos, o casamento é maldito. Por isso o coito é obrigatório. Por isso o hedonismo impõe o excesso, o gozo. É no consumismo que os jovens muito precocemente sentem obrigados a se entregar à permissividade imatura da vida. A imaturidade é espaçada porque essa juventude é desprovida. Desprovida, sobretudo de crítica. É uma massa passiva, conformista, liberal e permissiva. 

Para Pasolini qualquer forma de enfrentar as ideologias burguesas parece ser uma forma de reconhecer seu poder, “dizer que a vida não é sagrada e que os sentimentos são tolices é fazer um enorme favor aos produtores” (pág. 198). O pessimismo denuncia a dessacralização. O vazio provocado encontra um paliativo preenchimento no consumismo capitalista. O vazio mostra a vulnerabilidade humana perante a morte. O medo de morrer não faz mais com que cuidemos da vida, apenas evitemos – estoicamente –, morrer. Mas, o domínio irrefletido sobre a vida é de fato hedonista. Queremos gozar no consumo e exercitar a intolerância à dor. Os religiosos pessimistas quiseram denunciar um sistema e acabaram favorecendo o seu progresso. Mesmo os religiosos atuais gozam de uma serenidade capitalista moderada. Adoçam a amargura da vida, assim eles devem orar: livrai-nos o pai da vida trágica, dai-nos a drágea.

Pasolini vê o presente muito ligado ao passado, mas não numa perspectiva filosófica como Hannah Arendt. Para ele “a derrocada do presente implica também a derrocada do passado” (pág. 201). Ao rebuscar a origem da decadência do corpo no passado, Pasolini diz que a história já era potencialmente precária. Porque se agora os jovens são assim, é porque no passado já havia a intenção de ser o que são hoje. Por isso os jovens são infelizes. Uma parcela de culpa é da juventude, e a outra parcela é dos pais. Para os jovens retornar ao passado, no intento de buscar uma melhor condição, significa que eles estarão fadados à mesma situação de hoje. Nesse dilema paradoxal, onde o sujeito sofre com os males da ideologia consumista só lhe resta poucas alternativas. Na verdade, qualquer caminho a ser trilhado desemboca no presente conformismo, porque o poder do sistema capitalista é de fato totalizante.

A identidade intelectual.
Maria Betânia Amoroso(2002), ao apresentar na introdução Pier Paolo Pasolini nos familiariza com sua vida, de modo que nos permite entender sua postura de pensamento, mas ao mesmo tempo nos dificulta conhecer afinco a peculiaridade da sua forma de produzir sua intelectualidade. Pasolini agrega diversos modos de pensar, não somente porque a sua luta é contra um fenômeno também múltiplo, mas porque é próprio do seu espírito ser como é, opaco, real, dinâmico, clínico, indecifrável. 

O fato de Pasolini se opor a Hegel com veemência já revelaria o pavor às formas massificadoras e totalitárias assumidas pelo poder capitalista, de onde originaria a formação das diferenças de classes. Assim como também Hannah Arendt, inspirada na fenomenologia de Heidegger, já relata uma perda de uma ordem idealista para uma desordem ontológica geradora de crise antropológica. 

Figuras como Marx, Freud, Gramsci, Rimbaud foram sem dúvidas fontes de inspiração à formação intelectual de Pasolini. No entanto, como nos fala Lahud, Pasolini é um solitário, é deslocado por auto-exclusão, por vontade e necessidades próprias. Observa-se sua postura em relação ao marxismo quando nos alerta sobre os vícios dos esquerdistas na analiticidade marxista. Pelo fato de ser demasiadamente teórico, o marxismo corre um grande risco de nos afastar da humanidade e das liberdades humanas.

Um solitário no presente. Um niilista? 
Para um hermitão as palavras de Sêneca sobre a boa vida, vivida de forma retirada é um consolo às aspirações de paz. Livra o sujeito das perturbações da vida caótica das grandes cidades. Um niilista também é um retirante, mas seu retiro consiste em morar na montanha como o grande profeta Zaratustra de Nietzsche. Mas, ser niilista consiste também em descer da montanha em alguns momentos para fazer suas intervenções nas massas. Esse niilista é aquele que está em seu tempo, mas o detesta, por isso mora nas montanhas.

Há também outro tipo de revolucionário, o híbrido. Ele é semelhante aos cabeludos no Discurso dos Cabelos. É um tipo de intervencionista oportunista, político, diplomárico, bajulador, sem causa, ou de massa. Ele está no presente, junto ao povo, mas sua causa é ofuscada e infundada porque ele é partidário. E os partidos sempre mudam suas leis, e quase sempre se submetem ao seu oponente, ou quando o vence assume o seu lugar e a sua postura.

Se fosse possível falar de um niilismo em Pasolini diria que ele é andarilho, um hermitão, um intelectual niilista que vive junto com seus algozes na periferia, no subúrbio, no dialeto, na irracionalidade, na literatura, na arte e no cinema. É esse intelectual do presente. Ele não foge para as montanhas, enfrenta o seu tempo com as armas do seu tempo. Não tem um partido, tem uma causa. Não impõe uma verdade, a desvela. Para Lahud, o presente em Pasolini é vivo, é real. Diferente do sentido de presente para Nietzsche e para Hannah Arendt. Esses são extemporâneos por diagnosticar o presente. Já em comparação ao passado, ambos veneram o ante-presente. Nietzsche, é mais profeta que intelectual, tenta converter o mundo à irracionalidade por meio do niilismo. Arendt parece tentar clarear o caminho obscuro do presente, a fim de lançar o homem novamente em terrenos seguros.

É esse tipo de intelectual pasoliniano que encanta Foucalt: sonho com o intelectual destruidor das evidências e das universalidades, que localiza e indica nas inércias e coações do presente os pontos e indica nas inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensará amanhã, por estar muito atento ao presente; que contribui, no lugar em que está, de passagem, a colocar a questão da revolução, se ela vale a pena e qual (quero dizer, qual revolução e qual a pena). (Foucalt In: Lahud, pág 35). 

Os niilistas parecem renegar o presente. Pasolini é um solitário também no que diz respeito à sua peculiaridade revolucionária. Ele é um amante do presente que lhe é sabidamente dessacralizado. É este tipo de intelectual tão esperado por Foucalt. Inclusive Lahud, com uma espécie de humilde sutileza intelectual livra Pasolini das inconvenientes interpretações que Foucalt faz em seu artigo sobre Os Comícios de Amor. Foucalt entende que Pasolini repudia a selvageria e a ignorância. Ao contrário, para Pasolini essa forma espontânea que agia as personagens tendia a apontar para a verdade delas, ou para as suas verdades psicológicas. Sua natureza. Com relação a cultura sexual, Foucalt entende que Pasolini luta contra uma nova cultura que se impõe à sociedade italiana. Enquanto que Pasolini queria dizer que nada mudou em relação a sexualidade "da velha e repressiva italieta"(pág 23). As pessoas, os jovens, ainda tendem a repetir o velho moralismo dos seus pais.

Hannah Arendt: a perda da tradição. 
Arendt teceu seus pressupostos filosóficos no contato com o pensamento do fenomenólogo alemão Martin Heidegger. A fenomenologia heideggeriana desconstrói os conceitos do pensamento dito concreto, como por exemplo, o cientificismo, a tradição, e o reducionismo. Justamente nessa perspectiva Arendt intui o conceito de observância das tramas do totalitarismo no aspecto histórico, tradição e razão. Na sua obra Entre o Passado e o Futuro (2005) ela descreve o resultado da quebra da tradição que o século XX testemunhou. Resultando na problemática política atual.

O platonismo, sinônimo de idealismo, serviu como a base do pensamento cristão ocidental. A grande trama narrada por Arendt é o processo de secularização que em marcha rompeu com o idealismo. A laicização abalou não apenas a igreja, ela própria era referência antropológica, política e filosófica do mundo greco-romanizado. O fenômeno que Arendt descreve foi o responsável por desarticular o padrão moral calcado na tradição, na metafísica e na história. Consequentemente desarticulou as regras que irrompem as ações morais. 

Os impactos da perda da tradição são observados na crise gerada à palavra. Para Arendt tudo que se sustentava na palavra, ou seja, no metafísico, sucumbiu. A verdade não é mais possível porque perdemos a sabedoria. Restam-nos ideologias tecidas no manto do neoliberalismo. Portanto, o sistema ideológico da burguesia italiana descrito por Pasolini corresponde ao fenômeno da secularização, que por sua vez é resultado da perda da matriz metafísica. O Absolutismo não é mais calcado naquela matriz idealista platônica configurada e fixada monoteisticamente em um deus rigorosamente ritualista. O absolutismo atual é totalitarista, não no sentido filosófico, e sim capitalista.

A origem da crise antropológica 
Para Hannah Arendt, a perda da tradição gerou uma lacuna entre o passado e o futuro, que legou ao homem sua instalação como morada. Desse modo, o seu passado lhe é inalcançável assim como o seu futuro lhe é obscuro. O absolutismo do século XX é essa condição ideológica na qual o homem vive o tempo como ininterrupta sucessão do que seria o presente, o aqui e o agora. Ao mesmo tempo em que é uma recusa ao passado, é também renúncia ao futuro. E quando o homem tenta voltar atrás ou se lançar à frente não lhe é possível. 

Ao fazer uma análise da história ocidental, Arendt diz que os idealistas: Platão, Santo Agostinho e Hegel deram o rosto teológico – não somente à filosofia e ao cristianismo –, mas também à política. A ideia de imortalidade na morada celeste regia a vida do homem antigamente. No entanto, hoje não há mais um compromisso com a imortalidade metafísica, e sim apenas física, por causa do secularismo. A vida teve uma queda ontológica, de modo que seu significado mais alto é chegar a outros planetas. Ou seja, até mesmo os sonhos são concretos. A secularização fez com que o homem voltasse a ser mortal, “agora, tanto a vida como o mundo tornaram-se perecíveis, mortais, fúteis” (Arendt, p. 108). A bilateralidade da fusão da visão de mundo de Pasolini e Arendt corresponde a uma forma divergente da vida. Pasolini ama o presente, o real. Ele vive o real, o critica. Ao passo que Arendt vê no passado uma forma ideal de vida. De modo que o presente lhe parece uma espécie de purgatório existencial.

A falibilidade.            
O filósofo brasileiro José Carlos Aguiar de Souza, ao tratar sobre o fim do teocentrismo na Era Média, nos fala sobre o tempo em que a história tinha uma solidez no sujeito, porque ele próprio tinha um fundamento seguro da ordem das coisas. Em consequência disso, “o sujeito moderno não possuía nenhuma outra fonte de certeza a não ser ele mesmo” (SOUZA, 2005, p. 72). O que a Era Moderna e a Contemporânea presenciaram foi a crise de fundamento. Voltou à condição humana e se tornou perecível. Perdeu o divino e se prendeu ao humano. A decadência não seria somente isso para Arendt, seria esse retrocesso somado ao liberalismo, ao capitalismo, ao secularismo.  

O antropocentrismo gerou uma crise política. Ao se desprender da religião ela perdeu a autoridade e a persuasão da moral-teológica. Por isso, muito diferentemente da República de Platão, não são mais os sábios que dirigem a polis, porque não há mais sábios. Existem, simplesmente homens, burgueses, fascistas, dissimuladores.

Referências Bibliográficas:
AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac e Naify, 2002.
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. (Debates – Política).
LAHUD, Michel. A Vida Clara: Linguagens e Realidade Segundo Pasolini. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
PASOLINI, Pear Paolo. Os Jovens Infelizes: Antologia de Ensaios Corsários. Tradução de Michel Lahud e Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1990.
SOUZA, José Carlos Aguiar de. O projeto da Modernidade: Autonomia, Secularização e Novas Perspectivas. Brasília: Líber Livros, 2005.


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