A trajetória da loucura: frágeis conceitos.
Por Adeir Ferreira
Michael Foucault aborda o tema da loucura para além das concepções da Idade Clássica. O viés histórico desembocará até meados do século XIX. Do início ao fim da trajetória narrada pelo autor a loucura toma formas de concepções distintas. Essas concepções são explicadas e criticadas por Foucault, mas ele não deixa de enfatizar que são essas noções que demarcaram a prática psiquiátrica do século XIX.
A loucura primitiva
Foucault faz um apanhado histórico da loucura e nos diz que antes de ela ser conceituada como tal pelos teóricos e estudiosos do passado ela teve predecessores anímicos mais sutis, como por exemplo, a melancolia, a histeria, a hipocondria. “A noção de melancolia era considerada, no século XVI, entre uma certa definição pelos sintomas e um princípio de explicação oculto no próprio termo que a designa”. (p 290).
Percebemos, então, assim como na história da própria filosofia hegeliana a catalogação dos elementos históricos para que pudéssemos a posteriori conceber o conceito científico de loucura. Tudo começa com a constatação de oscilantes hibridismos de conduta moral/espiritual/social/econômica/de-humor. “Aparentemente, é toda uma melancolia dos espíritos, toda uma química de humores que guia análise de Willis”. (p 295).
Loucura e razão
Foucault nos diz que a loucura se instala num contexto dual. Num momento ela é carregada de negatividade, status que confere ao operans médico entre o desatino e a verdade, ou seja, entre o sentido último da loucura e a verdade médica. Por tais circunstâncias a loucura é uma manifestação fenomenológica, onde ela revela e oculta algo à racionalidade que lhe põe numa redoma de não racionalidade.
Na interioridade do desatino, o que o autor chama de “sentido último da loucura” é o esconderijo dentro da sua própria negatividade, fato que gerou uma positividade para a própria loucura. É nessa via de reflexão que Foucault abandonará as concepções psiquiátricas da história e mostrará as figuras clássicas que a loucura tem apresentado.
O desencadeamento da positividade frágil não extirpou de todo a negatividade. Tal proximidade velava a demência. Com a densidade da positividade a mania e a melancolia tomam forma. Num terceiro momento, demarcando assim a consistência da positividade, consequentemente mais afastada do desatino (negatividade), a medicina e a moral conceituam a loucura como histeria e hipocondria, que por fim desembocará no que fora chamado de “doenças nervosas”.
Foucault diz que a demência é uma condição onde a loucura toma várias formas. Ele descreve que nos séculos XVII e XVIII o termo demência era o que mais se aproxima da essência da loucura, no entanto o referido termo se radicalizou em adjetivos que culminaram como repúdio à razão.
Conforme os conceitos de Willis investigados pelo autor, demência torna-se Stupiditas, como um defeito da inteligência. Destas falhas, Foucault falará que as noções do funcionamento do intelecto são permeadas pela concepção que se tem dos movimentos e do equilíbrio do espírito em relação à formação do corpo e do cérebro. Uma vez que o cérebro está mal formado, impedirá também a harmonia com o espírito. Desses conceitos falará Foucault que a loucura não se reduz a sintomatologias cerebrais ou do espírito, ela é em sua essência um fenômeno que ultrapassa a lógica organicista médica.
As explicações químicas da atualidade permitem ao autor desfraldar os fundamentos que perpetuaram as práticas psiquiátricas do século XVIII, por isso Foucault rechaça os conceitos da medicina organicista por via de reflexão a partir de novas concepções de estruturas, formas e funções do cérebro. Mais adiante o autor faz comparações e interpretações de sintomas que unia a demência às diversas manifestações equivocadas.
Em outro momento Foucault trata da mania e da melancolia do século XVI como fato investigado sobre o prisma da sintomatologia associada a precária explicação do próprio termo. A discussão em torno da definição de melancolia sempre esteve lado a lado com fatores climáticos e de humor, por esse motivo Foucault incita mais críticas às concepções de Willis. Foucault diz que a mania e a melancolia eram compreendidas por muitos estudiosos do século XVIII como doenças que tem uma ligação, enquanto que outros supunham que se calcavam nas oposições, como parece ser o caso de Willis.
Para Willis há diferença entre mania e melancolia. O melancólico suspende as atividades do imaginário, ou melhor, as reduz ao estado de repouso e lazer e se detém na reflexão, enquanto que o maníaco padece do bom uso da razão. O maníaco em suas manias não tem uma reta representação da verdade, de noções ou conceitos. Em relação aos sintomas, o primeiro é triste e transmite medo, enquanto que o segundo é audacioso, fugaz. O mundo da melancolia é úmido, frio e pesado. O mundo da mania é seco.
No arrolamento histórico Foucault constata também as mutações das noções sobre histeria e hipocondria. Após suas delongas o autor falará que tais doenças estão associadas às doenças do espírito. O parentesco da histeria e da hipocondria com a mania e melancolia ora é rechaçado ora admitido, conforme considerações teóricas da medicina. Por fim, Foucault falará que o foco que parece reunir novamente as reflexões e dar o veredicto que guiou as práticas médicas foi a concepção organicista das doenças mentais. É então dessa maneira que se torna possível uma psiquiatria científica do século XIX. No entanto a conclusão que Foucault faz parece ser mais um sarcasmo do que uma crítica, pois ele diz que a psiquiatria encontra sua origem na excitação irônica de seus próprios conceitos.
Foucault questiona a conceituação rígida da loucura pela psiquiatria cientificista. E assim mostra que tal desenvolvimento histórico é controversamente frágil por sua autossuficiência empírica ao objetivar as singularidades culturais, subjetivas, regionais através de parâmetros organicistas. Depois de Foucault muita coisa mudou no sentido de flexibilidade conceitual da loucura organicista. Mas convém questionar se por outro lado não houve um engessamento também teórico acerca da loucura - e das demais síndromes do espírito -, nas psicologias comportamentalistas.
FOUCAULT, Michael. História da Loucura na Idade Clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo, Perspectiva, 1978. (p 278 a 328).
QUESTÕES
1. Podemos inferir que o termo "loucura" se trata de um arranjo forjado pela razão no modus organicista da ciência moderna? R. Sim, pois a classificação do termo demonstra uma preocupação da classe organicista em dar uma resposta objetiva a um conjunto de males do espírito, da conduta, do convívio social. 2. Quais as implicações da loucura - enquanto conceito e fato -, para os pensadores não-organicistas, como Foucault? R. Implicou em crítica, a princípio, pois Foucault questionava o conceito rígido de loucura que impede a reflexão sobre o objeto. Ele dizia que a loucura não pode ser entendida somente como produto de disfunções orgânicas, podemos entende-la também, como por exemplo, em estrutura de linguagem, de cultura e também como questão subjetiva. 3. Levando em consideração o trajeto da loucura descrito por Foucault, como podemos entender o tratamento da loucura atualmente pela classe médica-psiquiátrica, terapêutica e psicanalítica? |
Muito bem caro afro.... só refletindo aqui,, como tal filósofo nos classificaria, baseando nas elucubrações e devaneios, nos tempos do "ócio criativo", da vida religiosa.. acho que pediria reforço ao Erasmo de Roterdam..bom texto
ResponderExcluirSaudações, nobre Jeosmar.
ResponderExcluirO Elogia da Loucura, de Eramos de Roterdam faz uso da loucura como meio para expor seus pensamentos contra a tirania teocrática de sua época. De qualquer modo, a loucura para Erasmo está para além dos conceitos organicistas. Erasmo apresenta uma loucura que liberta: "se dentre todos os homens houver um que ouse ir contra a multidão, lhe dou um conselho, retire-se para o deserto e goze alí da sua sabedoria".
Att Adeir