Martin Heidegger: o problema do fundamento.
Esse breve texto ousa quebrar algumas formas rígidas das representações
fixas do desvelamento. Primeiramente porque se propõe a ser uma leve e descontraída
leitura de Heidegger. Posteriormente, quer ousar driblar os percalços apresentados
por Leibniz com relação à essência verdade. Sabendo por certo que da verdade não
é “qualquer coisa” muito menos “uma determinada coisa”, este texto propõe uma
intuição particular para inferirmos acerca do fenômeno do desvelamento.
Nesse sentido, espera-se também que a propositura dessa empreita – por ser
um caráter inferencial –, não desfira um acidente intelectual contra o
pensamento heideggeriano. Como convite a essa artesanal incursão acerca do
desvelamento em Heidegger, digamos a priori que a verdade parece ser apaixonada
pelo andarilho de Nietzsche, que canta e dança, e não tem uma morada, e acusa
os moralistas por suas duras regras ao tentar conquistá-la.
Observa-se em Leibniz – no seu estilo dialogal de escrever –, o senso descritivo
e afirmativo, certamente produto da metafísica. Justamente neste ponto, Heidegger
faz sua análise crítica à compreensão de Leibniz sobre o problema do fundamento
da verdade por meio da desconstrução do sistema axiomático lógico e metafísico.
Heidegger revela a fragilidade monadal do sistema leibniziano ao lidar
com a essência do fundamento, e nos apresenta as verdades do Ser e do ente como
ponto de partida para o entendimento da verdade em geral. Heidegger questiona a
essência do fundamento do princípio da razão desconstruindo os axiomas lógicos
pela ótica da própria lógica. Depois ele investiga ontologicamente o caminho
pelo qual a verdade leibniziana não teria um compromisso com as fundamentações
do ente como causa e efeito, e sim como possíveis conexões interpretativas
oriundas das conceituações fixadas no ente.
O Princípio Supremo da Razão
Ao analisar as proposições: nihil
est sine ratione (nada existe sem razão), e a perífrase positiva omne ens habet ratinem (todo ente tem
uma razão), Heidegger nos fala que o ente é enunciado enquanto algo como
relacionado à razão. Portanto, tais proposições não esclarecem o que constitui
a essência da razão. Justamente nessas nuanças Heidegger lança o característico
desconstrucionismo de sua fenomenologia. Investigando o tratado de Leibniz
sobre a essência da verdade, Heidegger critica o sistema conjectural e axiomático
leibniziano, a fim de, expor as fragilidades desta forma metafísica ou lógica
de apresentar a verdade. Parece que Heidegger não se importa muito se o principium rationis de Leibniz está
atrelado à lógica, ou à metafísica, ou às duas coisas. Heidegger vê o problema
da verdade e do fundamento por via da ontologia.
“Um predicado ou consequente está sempre presente num sujeito, ou
antecedente; e é nisto precisamente que consiste a universal natureza da
verdade” (Heigedegger, p. 17). A lógica de Leibniz para Heidegger ofusca a
explicação da natureza da contingência como causa e efeito, o consequente é
resultado do antecedente. Portanto, “nada existe sem razão” e “não há efeito se
causa” (ibd., p. 19), logo, infere-se que “existiria uma verdade que não
poderia provar-se a priori” (ibd., p. 19). Quando Heidegger diz que Leibniz
concebe a verdade como verdade do enunciado (proposição), observa-se que o
pressuposto deriva de conjecturas da lógica. Por isso, Heidegger diz que a
verdade para Leibniz é a consonância, ou seja, concordância com o que se
manifesta na identidade como unido. Portanto, no âmago da verdade “habita uma
relação essencial à algo de semelhante com o fundamento” (ibd., p. 21).
O ente não pode ser meramente consequência de um precedente, pois, ele
seria inacessível para as demais interpretações fora do seu precedente. A
pré-dicação não revela o ente, antes o direciona a uma única via de
representação mais ampla. A explicação de Heidegger para essa grande virada se
exprime por meio do desvelamento: “só o desvelamento do ser possibilita a
revelabilidade do ente” (ibd., p. 25).
O desvelamento é a verdade ontológica. Ele é um acontecimento, e não um
sistema de revelação da verdade. A verdade ontológica interpela o ente, não
quer dizer que apreende o ente. Apreender seria o mesmo que tentar codificar,
decifrar e deter o ente. No entanto, as interpelações do ente são formas de se
comportar do Ser, e não um mecanismo lógico, programado, imposto e exigido como
condição de existir do desvelamento. A compreensão do ser não é a apreensão do
ente e nem de si mesmo, é a compreensão “pré-ontológica” que “se desenvolveu
por si mesma e transformou expressamente em tema e problema o ser nela
compreendido, em geral projectado e de algum modo desvelado” (ibd., 25).
Para Leibniz, a verdade seria
autoreveladora. O problema é que essa revelação não se trata da apresentação do
sustentáculo da verdade, e sim de si mesma no palco das aparências. Sua
consonância revela uma comunhão metafísica e lógica das proposições à medida
que não sustenta contradições. Ao ser questionada sobre suas afirmações a
verdade sustentaria sua veracidade no testemunho de sua coerência interna. No
caso da ciência, talvez consista nesse fator a leitura de Heidegger à maneira
não-introdutória de agir, ou seja, sempre autoreveladora, enquanto que a filosofia
seria introdutória.
“Entre a compreensão pré-ontológica
do ser e a problemática explícita da conceptualização do ser, há múltiplos
estádios” (ibd., p. 25). Portanto, a verdade não seria capaz de sustentar a si
própria por meio de proposições lógicas, pois, um conceito não tem como precedente
apenas o conceito fixado aprioristicamente.
Ou seja, o que se entende por efeito não é necessariamente uma consequência de
sua causa, e sim uma das múltiplas manifestações das representações
pré-conceituais do ser que não tem a intenção direta de provocar tal efeito.
A verdade em si mesma não existe sem que haja cúmplices
Talvez
a leitura religiosa seja um excelente foco de análise nos tratados sobre a
verdade e sobre a essência da verdade. A passagem
bíblica tem o seu sentido e significado em um contexto religioso, porque as
conexões necessárias ao entendimento do que significa, como por exemplo, Jesus
à Tomé depende de uma história prévia. No entanto não exclui o leigo do
entendimento do diálogo, talvez até lhe facilite a construção de uma crítica
pelo fato dele não ter que se submeter à sacralidade religiosa.
A
sacralidade, a autoridade, as afirmativas, as teses científicas tais como os
axiomas lógicos são e estão imbricados de um dossel que se confunde com verdade.
Apresentam-se sempre fechados, sempre certos, claros, coerentes e concretos. Um
lógico, um devoto, um subalterno quase sempre não questiona os fundamentos de
tais aparências, pois se contenta com seu esplendor, sua perspicácia, sua eloquência,
ou até mesmo justifica que suas perguntas podem ter sido feitas reclamando um
fundamento da verdade, mas que a resposta ainda não fora encontrada, ou talvez
não seja necessária, porque o que importa é o resultado.
Graças
aos recursos linguísticos o “talvez” me permite o devaneio discursivo sem ser
repreendido a priori, por isso “talvez” o problema do fundamento sobre a
verdade esteja correlacionado com questões da existencialidade humana. Sem ser
apelativo com o senso comum, ou tagarelar sobre aspectos não filosóficos faço
de longe referência às orientações psicanalíticas para insinuar que a verdade
parece se impor mais fortemente pelo poder do convencimento e da coerência
lógica de suas proposições do que pela essência ontológica do seu fundamento.
É
comum no cotidiano vermos crianças que defendem suas teses à partir de fontes
que lhe são seguras, ou nesse caso, testemunhal, real, tais como o seu pai, sua
mãe ou alguém que ele reconhece como autoridade, tutor, educador. Na fase
madura veneramos pensadores, obras, hábitos que correspondem com nossas crenças
na autoridade – consciente ou inconscientemente submissas e veneradas –.
O fato de a
fonte da verdade ser segura oferece comodidade, respeito, afabilidade, impedindo
dessa forma o diálogo. Heidegger será, portanto, o filósofo da desconstrução
das garantias sobre o fundamento da verdade solidificada no confortável e
antigo dorso da história ocidental, que acomodou desde Platão a Hegel, na
metafísica e na lógica, um sacro fundamento da Verdade Absoluta.
Para finalizar
a exposição dos cúmplices seria interessante fazer um adendo à Schopenhauer no
tratado A Arte de Ter Razão (2001). Nesta pequena obra Schopenhauer
oferece 38 estratagemas como formas de obter razão por meio de técnicas
retóricas do discurso. Numa exposição retórica o que importa é obter vantagem
sobre o oponente na busca da verdade. A verdade em si mesma é secundária, e até
mesmo desnecessária. Para Schopenhauer, se o locutor conseguir vencer
retoricamente o oponente, sua vitória soará aos ouvintes como verdade, e o
próprio fato de ser eloquente e perspicaz servirá como fundamento da verdade.
Longe de fazer
um juízo equivocado, até pelo fato de ser ainda cedo, podemos inferir que
Leibniz aponta para uma “verdade em si mesma”, que contém em si própria seus
fundamentos, por isso ela confere às suas consequências e efeitos o seu
veredicto. Finalizemos este primeiro momento parafraseando. A dita “verdade em
si mesma” é esse objeto opaco. E para que seja ainda mais impenetrável, sua
opacidade é oferecida como fundamento e essência de credibilidade aos seus
maleáveis servos. Os senhores que endurecem as entranhas da verdade com seus
chicotes retóricos e funcionalistas são cúmplices que nos escraviza e nos lança
num engodo ideológico.
Uma amostra religiosa da concepção de “verdade em si mesma”
“Na casa de meu Pai há muitas moradas. (...) onde eu
estou, também vós estejais. E vós conheceis o caminho para ir aonde vou.
Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o
caminho? Jesus lhe respondeu: Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. (João 14, 2 – 6).
Cristo, ao
dizer aos discípulos que lhes iria preparar uma morada celestial estava
imbricado de conceitos metafísicos. Este é o primeiro motivo para que Tomé não
compreendesse onde era essa residência, pois a discussão havia originado no
pressentimento que Jesus teve de sua morte – ao descobrir o seu traidor –, sem
que os discípulos soubessem. A falha na comunicação trouxe um ar aforismático
que acabou por ofuscar ainda mais o entendimento dos discípulos sobre quem era
o Cristo, a que morada ele se referia e, o que seria a verdade, ofusca, sobretudo,
o fundamento da verdade.
A afirmativa
“eu sou o caminho, a verdade e a vida”, podemos interpretá-la da seguinte
maneira: “eu sou o caminho para vocês que conduz a mim mesmo, que sou a
verdade, na qual todos vocês irão viver”, ou, “eu sou a causa e o efeito”, ou,
“eu sou o produto e o produtor”, o diálogo se fecha. No entanto não esclarece o
fundamento das afirmativas. Logicamente faríamos um esforço exegético ou
teológico desnecessário para decifrar a passagem bíblica. O intuito é mostrar
como a definição de verdade se fechou em si mesma. Os questionamentos cessam,
as consonâncias da verdade são produzidas pela submissão à sacralidade
profética e à sabedoria retórica na expressão da metáfora.
Os dialogantes
do senso comum não ousam ir além das amostras dos efeitos, o máximo onde
conseguem chegar é na causa, e ela mesma dá o veredicto final sobre a essência
do fundamento inexistente ou infundado. Tomé é um discípulo mal visto no âmbito
religioso, porque ele questiona demais. Seu hábito de perguntar é entendido
pelos cristãos como falta de fé, quesito fundamental para vida cristã. Chega
num certo ponto em que seu mestre Jesus lhe concede provas mais concretas
porque Tomé poderia exigir provas ontológicas sobre a verdade firmada.
Nessa
perspectiva Heidegger diz que a verdade para Leibniz é a verdade do enunciado
(proposição). Ou seja, verdade fechada em si mesma, coerente consigo mesma e
que impõe às coisas (discípulos) o seu veredicto. Quando questionada sobre sua
identidade firma-se sobre si como sendo ela mesma o fundamento. Para levantar
um grande questionamento acerca do fundamento Heidegger pergunta sobre o
fundamento da causa e sobre o fundamento do efeito. Chegando aos fragmentos
horizontalizados das várias manifestações, fruto das interpelações do Ser.
Heidegger reconstrói a tão conhecida verdade como uma representação
dessacralizada (profanizada), ou seja, que não foi intencional, planejada,
apenas escolhida como conexão interesseira da apresentação.
Referências Bibliográficas:
Bíblia Sagrada. 26 ed. Ave-Maria: São Paulo, 2000.
HEIDEGGER, Martin. A
Essência do Fundamento. Edição Bilingue. Edições 70: Lisboa, S/A. (Obs. sem o ano de publicação).
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano. Tradução de Luiz João
Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Ter Razão. Tradução de Franco Volpi. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
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