Ditadura. Que tal
repensá-la?
Por Adeir Ferreira
Desde
as grandes manifestações em junho de 2013, em diversas capitais e cidades brasileiras,
uma voz tímida reunia distintas reivindicações. À medida que o tempo foi
passando, o novo movimento social também foi ganhando temas específicos e
líderes específicos. Faltava apenas massa específica, pois até então não
existia um tino. Ou seja, o novo tipo de movimento social, sem causa
específica, sem liderança, sem partido, sem classe específica ganhou uma
identidade mais nítida só quase um ano depois.
Em outubro de 2014 a atitude reivindicatória decidiu nas urnas o seu partido, a sua classe, a sua liderança, e o mais profundo dela, a identidade. Desde o início das campanhas eleitorais para o cargo de executivo da presidência da República, o cisma se instalou na nação brasileira. Somente nesse momento foi que a face política da população pariu totalmente sua cria ardilosa, cuja gestação iniciara em junho de 2013. O exame de DNA foi feito, e consequentemente o registro em cartório do filho de pai – até então incerto –, deu cabo.
As amarras gramaticais não coagem mais a escrita. A fala também está livre das censuras pudicas e políticas. Parafraseando a filósofa política Hannah Arendt, a referida liberdade é um mal instalado há muito tempo no Ocidente. A tal liberdade que julgamos ser positiva é na verdade uma grande ditadura, imposta para a manutenção do poder. Conforme Arendt, as vozes metafísicas eram unilaterais, tiranas, uníssonas, unívocas, antidemocráticas, portanto, tenazes, firmes, tiranas. A rigidez da orientação política permitia ao Ocidente um rumo “certo”. Ao mesmo tempo permitia ao sujeito que discordava um canal de expurgo do sistema para se posicionar contra.
O dissidente do sistema era facilmente identificado. Quem nadava contra a corrente tinha, igualmente, um discurso forte, rígido, eficaz. O seu silêncio era tão forte quanto suas palavras e gestos. Por menor que fosse sua reivindicação, seu efeito era estrondoso. Lembremos-nos dos cientistas heliocentristas e das bruxas do final da Era Média. Eles incomodavam o poder instituído. Seus posicionamentos políticos, científicos, morais, religiosos eram gravemente perigosos para o sistema teocrático-geocentrista-metafísico da época.
Para Hannah Arendt, o Ocidente se instalou em uma crise, cujo precedente foi a queda da metafísica. Longe da etimologia ou etiologia da palavra na seara da filosofia, expurgarei seus sentidos para ser direto no objeto em curso. Metafísica é: a teologia escamoteada pelo racionalismo e pelo empirismo; o teocentrismo rebaixado pelo antropocentrismo; a palavra (abstração) expurgada pelo fatídico; o diálogo substituído pelo raciocínio lógico; a razão crítica vencida pela razão instrumental-operacional.
Para Hannah Arendt, antigamente a palavra era um veículo forte. A crise da metafísica é então a crise da palavra. Portanto, tudo que se sustentava na palavra, ruiu. Antigamente a ditadura militar do Brasil era materializada na farda verde-oliva, nas insígnias, divisas e patentes dos militares. Até os boçais podiam identificá-la facilmente. E em alguns casos podia combatê-la, emboscá-la, evita-la, desarmá-la. Portanto, podia ser questionada. Os dissidentes eram torturados, perseguidos, presos, mortos. Suas vidas ceifadas, seus sangues derramados tinham valor. O silêncio era forte e imponente. O silêncio, o exílio eram formas de resistência.
Em uma ditadura militar, como a que tivemos no Brasil, a democracia – embora ainda não existisse formalmente à luz da Constituição Cidadã – era mais nítida porque era mais reclamada. Mas, atualmente, por causa da crise da palavra, o fenômeno midiático no Brasil criou um jargão de “liberdade de expressão” que teve muito sentido no período de regime militar, por isso se tornou um direito constitucional. Só que a liberdade de expressão repetrificou a ditadura no discurso ideológico das emissoras de televisão, nas editoras de jornais e revistas impressas. Qualquer cidadão que ousar expressar sua liberdade de opinião em meios virtuais rapidamente é rechaçado pela imprensa oficial.
Mas, então quer dizer que a palavra, cuja decadência e impotência foram anunciadas por Hannah Arendt teria sido ressuscitada? Creio que não. O poder instituído se fingiu de morto para gozar as energias vitais do ébrio coveiro. Nos governos petistas, enquanto a mídia personifica a imagem do poder executivo como crise e corrupção, o poder legislativo e o poder judiciário faziam silenciosamente o seu trabalho sujo. A liberdade de expressão diz que denuncia, vigia, fiscaliza. Concordo. Mas denuncia, vigia e fiscaliza a quem? Petistas. Somente petistas.
Berrar contra as atrocidades dos poderes institucionais, midiáticos, fanáticos, legislativos, judiciários, homofóbicos, proselitistas, racistas, classicistas deixou de ser eficaz. Deixou de ser um direito, porque se tornou barbárie. Uma minoria é educada politicamente. Mas essa minoria não é mais caçada como antigamente. Suas vozes calejadas, suas razões críticas não têm mais espaço. A massa revoltosa só tem ouvido para a voz oficial da mídia. Qualquer tentativa de crítica é irrompida por jargões prontos: petralha, petista, comunista, chavinista... assim como na Era Média quando os dogmas dirigiam a cultura da ignorância.
O
estrago do pós-ditadura no Brasil foi tão fatal que até mesmo as mentes mais velhas, os
guerreiros mais velhos bebem docemente esse veneno. Constatei que em muitos quartéis,
sobretudo, as casernas das forças-armadas mais atuantes na ditadura, se respira
o ar do regime. Todo dia 31 de março se faz discretamente uma reverência à “Revolução Democrática” – para
mim no mínimo jocosa – . Se houvesse dentre eles um
grau mínimo de bom senso, entenderiam semanticamente que revolução democrática
é um verniz nefasto do crime. Quanto mais tenta absolvê-lo mais evidente e
vigoroso ele se torna. Porque não fazem como a Igreja Católica? Peçam perdão
pelos erros do passado e logo serão absolvidos.
Não somente nos quartéis, mas também em muitas escolas, em diversas instituições, e em muitas igrejas há uma descrença no país. Toda a culpa recai no Partido dos Trabalhadores-PT. Esses crentes pedem impeachment e ditadura. Devo dizer, que por um lado eles têm razão, aliás, estupidamente têm sentido seus pedidos. Pois, a ditadura é muito mais fácil de ser combatida do que a estupidez política. É muito mais fácil de escamotear uma ditadura do que a boçalidade política. Se a estrutura do poder atual for trocada pela ditadura podemos dizer que a democracia e o progresso serão de fato conquistados.
A cúpula do poder está nos bastidores da mídia (Globo e cia), nos partidos reacionários (líderes da audiência, artistas), nas bancadas religiosas nos moralistas monopolistas do Congresso Nacional (Eduardo Cunha, Bolsonaro, Feliciano, Aécio), no STF (Gilmar Mendes, ex-ministro Joaquim Barbosa - que ainda representa o ideário capitã-do-mato), nos quartéis e nas escolas, mas não no povo. Pois a maioria do povo brasileiro decidiu nas urnas pela igualdade, pela liberdade, pelo progresso, pela dignidade, pelo respeito.
Se a democracia brasileira arroga para si a “decisão da maioria”, então por que a maioria comprovada nas urnas não conseguiu alavancar suas conquistas? É bem provável que esse fenômeno seja porque essa maioria é a parcela maior da pobreza, e dos assalariados. Então a nossa democracia não é a voz da maioria, mas sim a voz da riqueza, da meritocracia, dos brancos, dos heterossexuais, dos ricos, dos senhores-de-engenho, dos coronéis e dos coronelistas. Mas, infelizmente muito senzalenses não sabem disso e optam pelo veredicto do seu senhor, porque ele é rico, estudado, inteligente e bem sucedido. Logo, ele deve saber o caminho certo. A voz da política brasileira é a voz do neoliberalismo.
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