Funções dos sonhos: uma breve apresentação da obra freudiana.
Por Adeir Ferreira
Contextualização
Sabemos que a proposta do Liceu
Filosofia é apresentar textos e questões na área de filosofia e sociologia. Por
isso, antes de prosseguirmos na análise da presente obra – que não é estritamente
nem filosófica e nem sociológica –, é preciso que façamos alguns
questionamentos: em que sentido Freud pode ser considerado um filósofo? Em quais
aspectos suas obras podem dialogar com as empreitas filosóficas e sociológicas?
A teoria psicanalítica freudiana tem espaço nos discursos teóricos e empíricos
da filosofia e da sociologia?
Os indutores filosóficos nas margens
subliminares das perguntas desprezam a teoria psicanalítica enquanto conhecimento
autônomo, pelo menos a priori. É justamente nessa lacuna entre conhecimentos
consagrados e novas teorias que surge a psicanálise. É também nesse sentido que
o livro dos sonhos de Freud será um dilema para os campos da fisiologia, da filosofia,
e da sociologia.
O presente texto é – antes de tudo –
um recorte do que uma análise das funções do sonho, na perspectiva de Freud. As
conclusões aqui apresentadas não têm validade de teoria psicanalítica, mas sim
como humilde leitura de uma obra de suma importância para a compreensão mínima
da fagulha teórica que gerou, e ainda gera tantos labirintos conceituais, o
sonho. Dessa forma justificamos porque o sonho será lido aqui como recorte em
termos de suas funções.
Freud, na condição de médico teve que
ter uma sensibilidade intuitiva, intelectual, social, filosófica, cultural,
religiosa muito grande do contexto que o embalava. No entanto, tudo ao seu
redor ainda era, cientificamente, um gerúndio. Ou seja, tudo estava ainda se
assentando, se universalizando, sendo conhecido. Por exemplo, as correntes
filosóficas, tais como estruturalismo, antropologia filosófica, fenomenologia
eram inexistentes ou ainda em desenvolvimento. O empirismo, como produto da cientificismo
já era praxe na época de Freud, mas ainda insuficiente para lhe lançar luz às
experiências clínicas, pois o médico migrava da fisiologia para a abstração
anímica do ser humano.
Nesse sentido, o trabalho de Freud parece
ter retomado o antigo dilema filosófico, corpo-alma. No entanto, ele propôs um
olhar teórico-empírico de um dos grandes males real que assolava a Europa, a
histeria. Mas qual seria a fonte dos males anímicos-psíquicos? Para Freud seria
os sonhos. Mas, porque os sonhos? Ao perceber a ineficácia dos “psicofármacos”
da época, e a ineficiência da hipnose no tratamento de moléstias psíquicas,
Freud resolve estabelecer um método de investigação existencial do sujeito com
o seu consentimento. Ou seja, diálogo investigativo da vida pessoal em um
estado consciente, e não mais inconsciente. Pois, o estado hipnótico, assim
como os remédios parecia arrogar para o inconsciente os sintomas fisiológicos e
psíquicos.
Os sonhos seriam para Freud uma
espécie de caderno oculto das vivências pessoais de cada ser humano. Uma vez
conhecido a intervenção seria mais eficaz para o tratamento das histerias, das
neuroses e das psicoses. É nessa condição que Freud inicia sua análise clínica
e faz da sua praxe um laboratório. Ele anota todos os sonhos e os analisa
abdutivamente. E dessa forma elabora a teoria onírica que será para a
posteridade a espinha dorsal da psicanálise. A propósito, será a espinha dorsal
da psicanálise freudiana, pois diferentes teorias surgirão à partir das
proposituras freudianas, tais como Jungiana e lacaniana.
A obra
Sigmund Freud (1856-1938), austríaco, médico
neurologista, criador da psicanálise. Freud escreve esta obra bem extensa de um
modo muito peculiar. O autor começa apresentando um curso histórico das diversas
culturas acerca do sonho. Assim ele apresenta a forma como pensavam na
antiguidade, os conceitos, as crenças e os hábitos de lidar com esse fenômeno.
E logo em seguida Freud direciona os seus escritos a autores das mais variadas
áreas do conhecimento, tais como medicina, filosofia, psicologia. Esse segundo
momento é um dos pilares mais importantes para seu pensamento porque é a partir
dele que o autor formulará a teoria de interpretação dos sonhos ora
discordando, ora complementando, ora concordando parcialmente com algumas
teses.
A presente obra se estrutura da
seguinte forma: alguns sonhos de terceiros e do próprio Freud são relatados a
fim de se prestarem ao trabalho analítico. O mesmo sonho que é apresentado no
primeiro capítulo, por exemplo, é retomado nos seguintes, pois, a cada
abordagem temática um novo conceito, uma complementação, uma nova interpretação
é dada. É dessa maneira que a obra de Freud parece ser um diálogo de fato com
os diversos autores, porque à medida que prossegue nos escritos progride na
explanação do conteúdo e elaboração da tese.
As funções do sonho
Num primeiro momento, Freud contorna
os antigos conhecimentos fisiológicos e filosóficos acerca do que seria o
sonho, premonição do futuro, diagnóstico de doenças, distúrbios somáticos dos
órgãos internos etc. Partindo dessas definições, mas, sobre o prisma mais científico
para dar base à psicanálise, Freud começa apresentar as características do
sonho para que mais adiante possa apresentar as suas funções básicas.
No que diz respeito às questões subjetivas,
o sonho é de responsabilidade do sonhador. Por isso, toda a análise deve ser minuciosa,
pois tudo que o sonho faz é reproduzir anseios ou impulsos relacionados ao
estado de vigília do sonhador. Nessa perspectiva, de acordo dom Hilddebrandt,
Freud diz que o sonho é revelador (p. 87).
A relevância que o sonho tem para a
psicanálise se constata quando Freud retoma Stricker e infere que, por mais que
o conteúdo do sonho seja imaginário, a sua carga afetiva é real (p. 91).
Partindo desse pressuposto Freud considera o sonho a ferramenta fundamental que
irá traduzir o pensamento onírico. Nesse sentido, o sonho visa realizar desejos
e ser uma ponte de ponderação do dinamismo da carga de energia psíquica entre o
inconsciente e o pré-consciente.
Ao explicar o sonho como ferramenta do
psiquismo acabou-se expondo também as suas funções gerais: traduzir o material
representado do pensamento onírico; realizar desejos do ego ou do recalcado; e
ser uma ponte de ponderação do dinamismo da carga de energia psíquica entre o
inconsciente e o pré-consciente. Ao relatar em Teorias do sonhar e de sua função (p. 92 segs), Freud confronta
diversas teses acerca da função do sonhar e nos diz que uma das finalidades do
sonho é ser, metaforicamente falando, como “garis da mente” (p. 97), porque ele
é benéfico à vida de vigília na medida em que revigora, revitaliza as energias
psíquicas para o dia posterior ao sonho (p. 99).
Mas, em termos gerais esse benefício
não se traduz meramente como um gozo, um alívio. Os sonhos são complexos e têm
diversificadas formas de manifestação: ora de satisfação para o ego, ora de
angústia e aflição e até mesmo de autopunição. Por ora, Freud diz que “(...) o
sonho é a realização de um desejo” (p. 135), porque o desejo não é expresso diretamente
por causa da censura (moral, religiosa, cultural, social...).
Só ao descrever a estrutura do
trabalho do sonho, em face da aparência do absurdo, é que Freud consegue
apresentar de modo conciso as funções básicas do sonho. O trabalho do sonho é
uma combinação de fatores: 1º “os pensamento oníricos nunca são absurdos” (p.
433), embora sua representação pareça absurda, mas são disfarces para driblar a
censura imposta pelo pré-consciente; 2º “o trabalho do sonho produz sonhos
absurdos”(ibd); 3º e produz “sonhos
que contêm elementos absurdos”(ibd),
e; o 4º fator que é a função do sonho: o trabalho do sonho “não executa outra
função senão a de traduzir os pensamentos oníricos de acordo com as quatro
condições a que está sujeito” (ibd).
Ou seja, os pensamentos oníricos não
são absurdos porque eles condizem com os pensamentos, atos, imagens, palavras e
todos os elementos da vida de vigília. Ele é o material recebido e armazenado
no psiquismo. Já o trabalho do sonho é que produz sonhos absurdos, porque ele
precisa se travestir de múltiplos disfarces a fim de velar o sono e traduzir os
pensamentos oníricos emanados do inconsciente. O trabalho do sonho não utiliza
a modalidade do pensamento da vida de vigília, tais como, raciocínio, lógica,
tempo, espaço, e sim desejos. A linguagem do sonho é o desejo. Portanto, ele
usa informações diversas apreendidas em diversos momentos da vida do sonhador
como elementos, mas modificados e distorcidos, para exprimir-se. Por isso, o
trabalho de interpretação do sonho implica em descaracterizar o disfarce do
sonho para saber o que de fato ele esconde do sonhador.
Para finalizar, na psicologia dos
sonhos Freud diz que o sonho é um modo de regressão ao passado infantil do
sonhador, porque ele representa o material do inconsciente (passado) como sendo
vivência do presente (p. 528). Por isso, “o desejo que é representado num sonho
tem de ser um desejo infantil” (p. 532). Portanto, a função básica do sonho é
realizar um desejo do ego que não foi satisfeito no passado ou do recalcado que
foi reprimido durante o dia ou no passado, ou até mesmo pode se tratar de uma
conexão com estímulos físicos simples que se manifestam no sono, tais como
sede, fome, vontade de fazer sexo, de urinar etc. (p. 530 segs).
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução de
Walderedo Ismael de Oliveira. Imago: Rio de Janeiro, 2001. (Edição comemorativa
100 anos)
0 comments:
Postar um comentário